quarta-feira, 10 de março de 2010

Eu fui russa com ele, queria ser Dostoievski

Então eu tenho esse gato que é um caçador inveterado. E tem muito passarinho por aqui, que o gato espreita o tempo todo. Mesmo enquanto dorme o felino, suas orelhas estremecem à mais banal algazarra da passarada. E o que ele acha bacana, que eu acho tétrico, é vir depositar aos meus pés os passarinhos que caça, em homenagem a mim, essa deusa que lhe dá tudo o que ele precisa pra viver uma boa vida ronronante.

Acontece que outro dia ele me trouxe um ser alado em bom estado de conservação, a não ser por uma asa quebrada. O que eu podia fazer? Não tenho gaiolas, detesto passarinho engaiolado. Se eu fosse um pássaro preferia a execução sumária a anos e anos de encarceramento. Não consigo olhar com bons olhos pessoas que tem em casa passarinhos em gaiolas. Tenho sempre ganas de por essas pessoas em igual situação por um tempo, pra elas verem o que é bom pra tosse.

Fui à luta, comprei lá uns breguetis e improvisei um flat para o bird, na esperança de que melhorasse e fosse embora, cuidar da vida. Um empenho. Todo dia esperar o gato dormir ou se ausentar pra colocar o inquilino no jardim, no quintal, na sala, em qualquer lugar onde ele pudesse sentir mais liberdade. Voltando o gato, a mão-de-obra pra reconduzir a emplumada figura ao seu cárcere. Aquilo me agoniava muito. E mais ainda ao pássaro, que começou a ficar estressado, jumpy, neurótico mesmo. Eu me senti mal. Mas fazer o quê? Largá-lo às mandíbulas de Mr. Gats?

Meu filho 6teen me atazanando: mãe, até quando você vai manter esse bicho  aqui? você só está protelando a morte dele. Eu: que cê quer que eu faça? ele não voa. Ele: sei lá, leva pra longe, solta longe daqui. Eu: adianta? onde que ele vai arrumar água, alpiste, como vai se proteger, se não voa e muito menos corre?
E o papo acabava assim, com meu filho fazendo cara de hmpf! vamos ver até onde vai isso.

Outro dia não aguentei mais o impasse. Não sei se bem o meu, ou o do meu sobrevivente, o qual atingia um estágio tão mas tão agitado, que passou a me irritar. Era como se ele me gritasse, ei! eu quero ir morrer lá fora, sua intrometida. Acha que gosto de passar hora após hora, dia após dia, reduzido a esse viver confinado, molambento da asa, sem companhia, sem persperctiva de vida passaral? Não lhe cabe decidir isso, a você, que nem sabe o que fazer da própria existência!

Ele me gritou telepaticamente essas palavras e eu, primeiro fiquei admiradíssima de que houvesse telepatia entre seres de inteligências diferentes, depois que houvessse telepatia em si, e por último que ele estivesse tão exasperado com a minha desastrosa ajuda e pensasse de mim o que pensava. Era um pássaro perceptivo.

Está bem, concordei. Vou soltá-lo lá fora e seja o que Deus quiser, não deve ser pior que viver preso, você tem razão, meu caro. Não o chamei de amigo porque ele nunca fez contato com os olhos e isso o tornou frio aos meus. Acho que os pássaros tem grande dificuldade com o tal eye contact, pois seus olhos são apartados e muito piscantes e sempre meio aflitos, isso não deve ser bom para qualquer tentativa de intimacy.

Peguei-o então em minhas mãos, pela última, vez e o levei a um canto do jardim onde havia sombra e terra mexida e algumas pedras, e uma pocinha d'água, contando que esses elementos seriam vitais para sua sobrevivência no aberto. E dali me fui sem olhar para trás, sem dúvidas, sem arrependimentos, pensando essa é a vida de cada um, sempre tem alguém se ferrando a todo minuto em algum lugar e eu nada posso contra isso, nem mesmo quando o mal acontece comigo. Fui-me.

À noite chegando meu filho em casa e vendo o flat desocupado perguntou sobre o inquilino. Não o vi mais, menti, ou não menti, pois não o vira mesmo. Mas omiti a parte em que deliberadamente o deixei ao Deus dará, sabendo que destino o aguardava. Ahá! interjeitou o menino, bem como eu disse que seria! E o que você queria? murmurei naquele tom que, ele sabe, significa nem mais uma palavra sobre o assunto!

Dia seguinte a horas tantas não programadas fui dar um giro pelos arredores do 'despejo'. Não demorou nada para que eu encontrasse o pássaro exangue, olhos definitivamente vidrados, coberto de formigas e sobrevoado por varejeiras. A asa quebrada estendida em toda a amplitude, o corpo meio depenado, e o sangue provocado pelos afiados dentes do gato, seco em seu peito de passarinho.

Pensei: preciso pegar uma sacola plástica e tirá-lo daqui antes que comece a cheirar mal. E alguma coisa me lembrou um som de balalaika, pungente, dizendo pega lá a sacola, que não vai aparecer na cena nenhum Karamazov, tua tragédia não tem grandiloquência, isto é tudo.

4 comentários:

  1. Essa foto me lembra uma cena de "Beleza Americana". Essa história tem, de fato, uma "beleza russa". E eu sempre desconfiei que San fosse uma gata, uma ronronante "beleza siamesa". Quanta beleza junta!

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  2. Adoro Beleza Americana. Eu já era apaixonada pelo Kevin Spacey bem antes de Beleza. Depois então, fiquei louquinha!!! Pena, né? Ele não parece apreciar esse esporte, nunca admitiu mas tb não desadmitiu, heehee. Meow ;)

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  3. "O pardalzinho nasceu livre. Quebraram-lhe a asa. Sacha lhe deu uma casa,ága, comida e carinhos.Foram cuidados em vão. A casa era uma prisão. O pardalzinho morreu.O corpo Sacha enterrou no jardim;a alma, essa voou para o céu dos passarinhos."

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  4. Pardalzinho, do Manuel Bandeira. Lindo. Hoje é a segunda vez que o Manu invade a minha emoção de um modo assim, botas altas e passo de ganso, sem apelação. Adorei!!! Beijo, craze.

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