segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Gustav Klimt, a quem entreguei a flor da minha inocência, num verão, no Castelo de Kammer

O Castelo de Kammer (Gustav Klimt - 1909)

Gustav encostou-se desajeitadamente na bancada, e uma porção de pincéis foram ao chão com estalos secos. Ele não se importou, puxou-me para mais perto respirando forte e soltando sua larga camisa, onde meus olhos procuravam manchas de tinta. Essa distração ele corrigiu segurando meu queixo com firmeza e levantando meu rosto, forçando-me a olhar dentro de seus olhos, cheios da brutalidade que me fascinava e me fazia detestá-lo. O que eu podia contra ele? Entreguei-me, amolecida, ele mordeu meu lábio antes do beijo, a barba arranhando meu rosto enquanto sussurrava San, San, ach meine Geliebte! O cheiro vulgar de schnaps em sua respiração me deixava levemente tonta e a sua força contra meu corpo pequeno quase me arrastava para a sua vontade mas, não, não era o mesmo o sentimento que nos ligava.

Ele queria em mim a beleza jovem e aflita que perseguia tropegamente o seu amor. Queria o sexo escandaloso que tomava conta da sua vida, e influenciava a sua arte, e mostrava a todos o seu desdém. Era isso o que ele desejava mais do que o corpo fresco sob o vestido que ele tentava romper, mais do que a pele luminosa que ele dizia cheirar a chuva e junquilho. Era isso em mim o que o enlouquecia mais: o espetáculo, o desafio, a resposta.

Eu? Eu queria o artista por trás da rudeza, o sublime por trás do suor e do hálito, o gênio delicado que ignorava o mundo e criava arte. Eu queria sua alma, sua essência, eu queria ser todas as telas imortais que sua sensibilidade produzisse, eu queria ser cada pincelada, cada cor, cada pequeno tremor que a tela recebesse, eu queria possuí-lo infinitamente mais do que ele a mim.

E enquanto ele se desvencilhava de minhas roupas e gemia gulosamente a cada palmo de pele descoberta, eu o observava, distante. Ele reparava muito pouco na minha expressão, certo de que me enchia de desejo. Eu podia gritar (e essa traição me divertia) "teu pincel me traz mais êxtase que teu falo, meu querido!". Eu podia ouvir minha própria gargalhada pontiaguda partindo as vidraças do estúdio, as figuras nas telas rindo comigo. Mas eu não queria feri-lo. Ou talvez eu quisesse, talvez eu gostasse de ver a arrogância esmigalhada, alguma dor. O que eu não podia era permitir que ele entendesse o que se passava. Afinal ele não sabia que era apenas o artista, enquanto eu era a mulher amada pelo artista.

Meu pobre Gustav! Beijava loucamente minhas pequenas mãos sem se ver nelas.

Foi o que eu imaginei, naquele verão em Kammer, passeando pelos jardins ao som de insetos e pensamentos. Depois disso nunca mais voltei ao castelo ou a Gustav. Eu tinha passado por eles, como o verão.

4 comentários:

  1. que lindo texto, San! forte, vibrante, intenso e... sábio. como são (comoção) as mulheres. a cada dia aprende mais e mais com elas.

    beijo do vini

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  2. Valeu, mestre Vini. Obrigada. Beijo com ou sem mordida? heehee

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  3. San, já disse várias vezes, mas vale repetir: você é uma escritora brilhante! Vou repetir até todo mundo saber disso.

    Beijo,

    Paulo

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  4. Paulinho,

    Estarei nefelibatando por vários e vários dias, a tiete aqui sou eu, não esqueça. Fico muitíssimo embevecida, meu Poeta. Beijo também.

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