sábado, 27 de fevereiro de 2010

Clichê


- Tem duas coisas que você precisa saber sobre mim, disse ela sem desviar o olhar das luzes da rua, borradas pela chuva. E antes de se virar para ele pensou em  largar o uísque que bebia. Passou a mão sob o copo, ver se estava seco e não mancharia a mesa. Era assim, nas horas de maior angústia coisas banais viravam sua maior preocupação. Procurou o guardanapo de papel largado por ali.

- Que coisas? perguntou ele contrariado. Aquela discussão  já se arrastava por mais tempo do que ele esperava. Ele não aguentava mais aquele vai e vém. Um dia estavam bem, no outro era discussão atrás de discussão atrás de discussão, e assim os dias iam se alternando e a sua esperança de que a vida deles virasse uma coisa viável ia se distanciando cada vez mais. Ele sentia um cansaço, uma saudade do tempo em que não a conhecia e em sua vida só havia problemas iguais aos de todo mundo.

- Eu não suporto cigarro e cachorro.
- O quê? Que droga é essa que você está dizendo?
- Eu não suporto cigarro e cachorro, entendeu? Quantos meses faz que a gente está junto? Sete? Oito?
- Dez meses. Faz dez meses. Vem cá, você não sabe quanto tempo faz que a gente está junto?

Ele deu uma risadinha desanimada, balançou a cabeça entendendo que fazia papel de besta ali. A mulher não sabia nem há quanto tempo estava com o cara, coisa que toda mulher sabe obsessivamente. Ela não sabia? Ou estava querendo irritá-lo mais a mostrar o quanto não se importava com aquela relação? Ele apertou os lábios, as mãos enfiadas com raiva nos bolsos, num deles o maço de cigarros que ele tentava ignorar. Soltava para o teto, em vez de baforadas, as risadinhas fracas, sem vontade, cabeça perplexa a balançar.

- Não é esse o ponto. O ponto é, quanto tempo eu tenho aguentado você fumando? Então são dez meses! Mais do que eu imaginava!

- Imaginava? Você "imaginava" o tempo que a a gente está junto? Meu Deus. Olha, vamos parar. Chega. Você quer, eu te levo embora.

- Você me leva embora? Eu vou embora. Não faça o gentil, não aja como se eu precisasse de alguém pra decidir por mim. Quando a gente se conheceu, o que mais te chamou a atenção em mim?

- Ah, não! Essa estória de novo.

- Mas é a verdade! Quando eu entrei naquela reunião, hein? Com aquele cabelo, eu, toda de preto, sandálias salto doze.

Ela fez um risinho de autodeboche pra brincar um pouco, desmanchar a tensão.

- Hein? Marchando como eu marchei pra dentro daquele escritório. Vocês todos pararam de falar. Ficaram vidrados. Lembra? O que você me disse depois?

Ela se aproximou abaixando a cabeça como uma menina, pra olhar no rosto dele, agora voltado para o chão, falou baixinho, pausadamente:

- Que a minha atitude, que a minha figura, eram desafiadoras. Foi isso que o fez se apaixonar no mesmo instante em que me viu.

-É. Isso e a fúria que você mostrou naquela reunião. Eu devia ter sabido.

- Devia, sim! Mas não soube. Ficou obcecado com o meu cabelo, com a minha auto-suficiência.

- Com a auto-suficiência que você parecia ter e com aquele cabelo de maluca.

- Eu estou há dez meses te aguentando fumar. E há dez meses eu finjo que não detesto teu cachorro nojento babando por toda parte. Meu Deus! Dez meses que eu aguento teus cigarros e o teu cachorro nojento.

- Okay. Tá bem. Você não precisa. É isso? Meus cigarros e meu cachorro. Olha, esses vão ser os últimos itens que a gente discute sobre o erro que nós fomos nas nossas vidas, está bem?

- E a tua família? Coisa mais ridícula! Teu pai é quem tem a palavra final em tudo.  Como é que pode? Você não sente a humilhação que isso é?

- Minha família? Minha família! E o bando de sanguessugas que você chama de sua família? Quem aguenta aqueles párias? Olha, sabe o quê? Vá embora, por favor. Vá, que isso está ficando muito feio, já passou até do nosso limite. Sério, se não quer que eu te leve, vá embora. Eu não aguento mais, hoje não. Por favor?

Suas últimas palavras sairam tremidas. Só faltava dar razão a ela e começar a chorar, mostrar fraqueza. Era o que ele gostaria, botar pra fora aquele nó no peito que vinha aumentando dia a dia. Ela não entendia. O que sabia dele, afinal? Nem há quanto tempo estavam juntos. Ela estava certa e tudo estava errado, fadado a nunca funcionar. Melhor chegar logo ao espasmo final daquela dor, incômoda como um torcicolo perene.

- Está bem. Eu vivo humilhado, eu fumo, eu tenho um cachorro nojento. Qualquer coisa. Todas essas coisas. Tudo o que você quiser mas agora, pelo amor de Deus, se você não for embora eu vou. Fique aqui, passe a noite, mude-se pra cá, qualquer negócio, só não vamos mais ficar juntos, está bem? Nunca mais.

Ele foi para a porta, cambaleante feito um bêbado, meio cego, meio zonzo. A cena toda era estúpida e repetida, como um disco riscado. Ele lembrou da canção. Como num disco riscado... A  vida dele havia perdido o sentido, ele havia perdido a noção, o cenário desabava no palco, blam! o estrondo, a poeira, tudo falso, ilusório. Chegou à rua. Ganhei a rua, ele pensou, tentando achar graça. Respirou fundo encostado à parede molhada. A chuva fazia sua camisa grudar no corpo, era um alívio, o frio, o ar frio, o espaço aberto.

- Espera! ela gritou, vindo atrás dele. Não sai desse jeito. Ficou louco?

Ficou louco. Ficou louco. As palavras se estatelavam na avenida molhada onde as luzes dos carros faziam listas vermelhas, tortuosas, listas às quais ele tentou se apegar, fixar os olhos duramente, alguma coisa tinha de parecer real naquele momento.

As buzinas, os pneus na rua molhada, os limpadores de pára-brisas, tec-tec, tec-tec, indo e vindo, indo e vindo, como a sua vida com ela, como os dias, as discussões, atritos, aquele amor tão insuportável, os carros passando por ele, a chuva caindo nele, a falta que ela fazia, o mal que ela fazia, seu cheiro, seu riso de cristal, sua exaustiva obstinação com tudo, a maneira como soprava o cabelo dele caído nos olhos, seu abraço de braços e pernas, Lolita crescida entediada.

Um carro descontrolado, a curva, o baque, seu rosto no chão, a água da chuva, o sangue vermelho, a lista vermelha de sangue sobre o brilho da água na rua se unindo às luzes vermelhas dos carros. A voz dela se distanciando, batendo nos vidros dos carros com as gotas de chuva. O cheiro da rua, as pessoas, a voz dela chamando seu nome que ele não reconhecia. A poça debaixo do pneu, a luz do poste refletida na poça, a última luz que seus olhos viam e a dor saindo do peito pela última vez e a sua voz que dizia o nome dela virando um sussurro, virando uma idéia, virando vapor no asfalto negro onde pedaços de vidro se misturavam a pedaços de tempo a pedaços de dor a pedaços de amor do que foi do que não foi.

Ela lembrou de uma conversa que eles tinham tido sobre Romeu e Julieta. Os dois, primeiro ele, depois ela, tinham lamentado que o Bardo os tivesse matado. Lembrou-se que ele disse sorrindo e beijando a sua boca:

- Não, boba. A gente não tem de mudar nada. Se o Bardo não os matasse, a vida os mataria. Como vai fazer com a gente.

Eles tinham rido e se abraçado, olhado nos olhos um do outro, fazendo pouco do agouro, da brincadeira, girando como os tolos apaixonados fazem para brincar de roda no meio do mundo. Tão clichê aquilo, ela pensou, enquanto olhava os olhos dele agora, sem luz, enquanto sentia a luz nos seus próprios olhos diminuir para sempre.

2 comentários:

  1. Lindo como um punhal cravejado de brilhantes.

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  2. Right. E depois eu que sou exagerada... Beijo, mesmo assim.

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