A Mae era uma mulher simples e abnegada. Trabalhadora, machista, submissa ao marido e aos filhos homens. Uma mulher à moda antiga, obsoleta.
Vó Canda era uma libertária. Feminista, divorciada, emancipada, ciente de suas prerrogativas, além de caipira convicta, aguerrida e irredutível, A nao ser diante de mim ou de minha irma, pra quem ela se desarmava e se derramava em mimos.
Ambas, saiba-me Deus como ou por que, tinham uns inexplicáveis laivos de aristocracia, que foram determinantes na formaçao da minha personalidade.
A Mae só usava perfume francês. Ou isso ou nada. E dizia, dos recônditos da sua jamais admitida coleçao de prosaicos preconceitos, que nada era pior do que "perfume de pobre", categoria na qual se incluíam as marcas vendidas em domicílio, que ela execrava. A consagrada estratégia de marketing door-to-door era por ela reduzida a pó. Tinha ojeriza à Avon e coisas do gênero.
Já Vó Canda abominava gritaria e voz alta. Quem quisesse comprar briga com ela, chegasse "bradando", como ela dizia em seu dialeto gauchês/tietês. Gritaria é sinal de fraqueza., o grito é o argumento de quem nao tem razao, ou nao está convicto da sua razao. Em palavras envernizadas, a voz da razao é fleumática.
Certíssimas elas. E elegantésimas.
Ouço hoje o mundo e caio na triste conclusao de quem ninguém mais tem um pinguinho dessa educaçao aristocrática. Muito menos um pinguinho de noçao, de qualquer educaçao que seja.
O som do mundo é desenganadoramente alto e ruim. O que se chama de música, hoje em dia, é um apanhado de acordes medíocres, percussao e obscenidades, em que qualquer débil mental faz sucesso.
A fala das pessoas está esganiçada, descontrolada, rachada, insuportável.
Meus vizinhos me dao a toda hora a impressao de estar vivendo num cortiço. Cortiço, pra quem nao sabe, era o amontoamento de pessoas sem classe, sem dinheiro, sem educaçao, a ralé. Cortiço é o precursor da favela. Os apartamentos de classe média soam como cortiços.
Por exemplo, a velha careca no prédio ao lado do meu - e olha que eu digo no prédio ao lado do meu, nao no meu prédio - chega a furar a barreira dos meus protetores auriculares de silicone, com o seu maldito papo destrambelhado às seis da manhã.
Velha desgraçada! Pra que berrar malditas abobrinhas, com a maldita empregada, às malditas seis da manha? Morra, mocreia insuportável! Nao vai fazer falta à ninguém.
Vó Canda dizia: "Minha filha, moça de família nao fala alto". A Mae dizia: "Minha filha, gente decente nao lava roupa suja fora de casa".
Mas, hoje? Filhos "de família", prebóis com seu carrinho importado úrtimo tipo, igualzinho a qualquer maloqueiro no seu Chevette podre remendado, ouvindo a mesma nojeira, no mesmo volume enlouquecedor, a qualquer hora do dia ou da noite, sem que autoridade nenhuma tenha cojones pra intervir.
As mocinhas? Umas galinhas loucas, como dizia Vó Canda. A qualquer momento um cacarejar desmedido, risadas histéricas, comportamento de fim de expediente em bordel, com desavenças. Que nojo. Chegam das pútreas baladas, altas da madrugada, batendo salto e tramela feito rampeiras revoltadas. E vestidas a caráter, diga-se de passagem.
E os homens de meia idade? Outro dia ouvi um papalvo berrando ao celular. Pensei tratar-se de um dos cortadores de grama ou pedreiros que trabalham no prédio. Qual! Era um vizinho, um doutor, funcionário de uma secretaria de estado, falando com um fulano que ele tratava de excelência.
Ouvi coisas que eu nao devia e nao queria ouvir. Sorte é que, além de a minha memória nao ser mais do que uma vaga lembrança, ainda há o meu total desinteresse pelos assuntos alheios, que me faz emouquecer de desprezo.
Mas, pergunto: custa às pessoas ter um pouquinho mais de amor pela aristocrática decência dos bons modos, do recato? Ser um pouco elegantes e agradáveis, finas? Deixar de lado esse cascao de povinho subdesenvolvido, subeducado, subpensante, subgente, metido a simpático e espontâneo? Custa restabelecer o antigo e mal avaliado respeito pelas aparências?
Sim, porque se a essa gente é impossível ser decente, tenha ao menos a aparência da decência. Pra mim é o que basta. Quero que se dane, contanto que seja em silêncio.
Mas, daonde?
Onde é que iam largar a pobreza de espírito, em toda a sua gloriosa e vigorante petezice?
Disse o sábio: a hipocrisia é uma homenagem queo vício presta à virtude.
ResponderExcluirNo mínimo isso, né, San?
Beco