Olha a hora.
Pensei em tomar uma caixa inteira de Lexotan com vodka.
Tudo aqui, ao alcance da mao. Meu teen nao deixou.
Ele nem está nem aqui, na real. A lembrança dele nao deixou.
Nao que eu nao pense no meu outro filho, mais velho. Penso.
Mas esse já está criado, bem situado na vida, nao precisa mais de mim.
O teen ainda precisa. Nao fosse isso [entram aqui os acordes iniciais da 5ª sinfonia de Beethoven, tcham tcham tcham tcham].
Nao fosse isso, falar a verdade, nao sei se eu teria a machice de fazer o que eu venho pensando em fazer nos últimos dez anos, e nao fiz até agora.
Parece palhaçada, nao? Alguém passar dez anos
querendo se matar.
Mas acredite, nao é palhaçada. Cara, é ruim pacará.
Penso seriamente se eu sou uma suicida de araque ou se, de repente, um dia desses, eu ainda chego às vias de fato comigo mesma. Seria um descanso.
Sabe aquele filme, A Series of Unfortunate Events? Se minha vida tivesse um título, seria esse.
Mas enfim, fui pra cama, depois de longo banho, com uma caixa de Lexotan e um copo de vodka.
Abri a caixa, tirei os comprimidos, tomei um trago e me deitei, os comprimidos comprimidos nas maos.
Pensei: coitado do meu teen, voltar pra casa amanha e dar de cara com uma mae mortinha da silva.
Dura, seca e arreganhada, como diria Vó Canda.
Pensou que inferno a vida do guri?
Se ele ao menos estivesse situado na vida, feito o irmao, aí eu podia.
Resumindo: nao o fiz.
Fiquei morgando até agora, quando enfim tomei o Lexotan. Apenas um. Com água. A vodka já foi.
Mas antes de tomar esse Lexotan, dormi um soninho fugás etílico.
E sonhei um sonho [podia ter sido um pesadelo].
Um sonho sofrido. Quase um pesadelo. Que foi assim:
Primeiro, antes de entrar no sonho propriamente dito, tenho que fazer uma digressao.
Dia desses meu segundo ex-marido me procurou, dizendo que precisávamos conversar sobre o futuro do nosso filho.
Nao vi por quê. O futuro do piá vai bem, obrigada, graças a Deus.
Mas, enfim, conversemos.
Aí ele veio com uma história, puxada lá do fundo do baú, cheirando a naftalina, tracinhas voando.
Que a gente nunca devia ter-se separado, patati patatá e coisa.
Oquesque? Tipo, vinte anos depois? Ó o cara.
Escutei tudo o que ele achou que devia dizer.
Com uma cara impassível. Por dentro fazendo mil caretas.
Sabe o que é nada a ver? Pois foi isso: nada a ver.
Mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha, seja lá o que a chonga queira dizer.
Quando a gente se encontrou na vida, ele era dez anos mais velho que eu.
Com o passar do tempo ele foi ficando uns vinte anos mais velho que eu. No geral, no discurso.
Mas o mais velho da história é a nossa história. Que pra mim está reduzida a pó de múmia.
Rola menos que roda quadrada, foi a minha resposta ao papo dele.
Essa foi a digressao esclarecedora. Agora vem o sonho.
Sonhei que estava com esse cara num lugar que eu nunca vi na vida.
Era uma rua qualquer de uma cidade litorânea qualquer.
Tinha gente descontraída pela rua, gente em clima de férias, com aquela alegria estúpida.
Tinha um sol legal, uma brisa constante, um murmura o mar.
Começa por aí a furada:
praia nao é a minha praia.
Mas enfim, estávamos por lá, tipo namorando, pelas ruas.
Ele segurava minha mao, conversava, sorria pra mim, docemente.
Eu pensava: Nossa, como ele está bonito! E jovem.
Ele parecia mais novo do que era quando o conheci.
Foi um homem bonito, verdade seja dita. O mulherio nao dava folga.
E a gente ali, conversandinho, ele todo afável, meigo como num sonho.
Eu pensava, amargurada: nao é dele que eu gosto!
Pensava, e nao sabia como dizer isso.
Porque sabia, isso sim, que naquele mundo de sonho, ele desconhecia qualquer coisa sobre mim.
Nao é dele que eu gosto, eu me repetia. Nao é dele, nao é dele, nao é dele.
Ao mesmo tempo era como se eu soubesse que tudo nao passava de um sonho.
Mas por uns momentos, segundos, eu desprezei a razao e curti a brisa em meu rosto, tao suave.
Nesse ponto fiquei agradecida. Por tirar dos ombros, momentos que fossem, o peso da minha verdadeira vida.
Mas, como dizia a cançao, foi tudo um sonho, acordei.
Só nessa idade as coisas valem a pena.
Depois disso, tudo na vida é só desencontro.